Quem se atreve a escrever sobre um disco carregado de clichês? “Um divisor de águas”, “um marco na carreira da banda”, “grande influência para a música brasileira atualmente” etc e tal… tantos clichês permeiam o terceiro trabalho de estúdio do quarteto carioca Los Hermanos que ofereço a outra face sem questionar. Impossível ficar acanhado diante de um trabalho que apresenta uma banda multifacetada, sem amarras, que cumpriu o que prometeu quando se ofereceu ao risco.

No inicio dos anos 2000, o rock nacional estava fora de moda, as bandas que existiam surfavam na onda pop para sobreviver diante do que vinha de fora, enquanto outros estilos ganhavam força no cenário musical. O disco foi lançado em maio de 2003, numa época em que o país vivia a esperança de um novo rumo econômico, político e social. De lá pra cá vivemos dias melhores, com altos e baixos, golpe de todos os lados e hoje sentimos na pele o dissabor. O resto é história, como todos sabem.

Sabemos que a história que liga uma pessoa a determinado disco, música ou banda é cheia de significados e sentimentos. Assim como Ventura, esse texto é um convite, uma página cheia de interpretações, com ou sem interrogação. Significa risco e aí reside o convite: você acha o risco bom ou ruim?

Sim, também conheci a banda através de “Anna Júlia”, aquela música com letra boba e toque de jovem guarda, que tocou incessantemente nas rádios entre 1999/2000. Era carnaval, festa de formatura, pelas ruas, karaokê ou qualquer evento, lá estava a bendita ecoando. Inclusive ganhou versão inusitada do ex-Beatle George Harrison. Na época, não tínhamos a facilidade de acesso que temos hoje e não me interessei por algo além disso. E, assim, o primeiro disco, Los Hermanos (1999), e o segundo, Bloco do Eu Sozinho (2001), passaram despercebidos por uns três ou quatro anos mais ou menos, para minha desventura.

Reencontrei a banda em 2003, ano de lançamento do Ventura. Lembro que estava em casa num domingo de manhã e coloquei no extinto programa Bem Brasil, da TV Cultura, apresentado pelo carismático Wandi Doratiotto, quando vejo a famosa banda de uma música só tocando coisas desconhecidas, como “A Flor”, “Quem Sabe”, “Cara Estranho”, “Último Romance”, “Todo Carnaval tem seu fim” e muito mais… Eu disse: QUÊ?!? Nesse dia conheci de fato Marcelo Camelo, Rodrigo Amarante, Rodrigo Barba e Bruno Medina, sem falar nos excelentes músicos de apoio.

Resolvi procurar a discografia nas plataformas de download de mp3, como Kazaa e outros que não recordo o nome. Como eu só tinha internet discada demorou uns dias para conseguir todos os discos. A partir do momento que ouvia cada faixa desconhecida, um sentimento de indignação aflorava por não saber onde eu estava que não acompanhei a banda que provou não ser apenas uma sensação de verão. Uma banda que estava fazendo um som único, misturando indie rock com MPB, marchinhas e ritmos latinos, embora não sendo tão original, tinha seu quê de interessante.

Lembro do amigo de um amigo meu, que se achava o maior fã da banda, quando soube que eu gostava também fazia questão de puxar conversa sempre que me encontrava para testar meu nível de conhecimento, jogar na minha cara que conheceu a banda além de “Anna Júlia” e que tinha ido em todos os shows aqui em Manaus. Isso foi antes de outubro de 2010, primeiro show que vi, no SWU Music & Arts Festival, que rolou na cidade de Itu, em São Paulo, não por acaso no dia do meu aniversário. Sim, até a ida aos shows também foram tardias pra mim. Perdi todos que a banda fez aqui antes de 2012, quando voltaram após o hiato para mais uma turnê de reunião.

Voltando ao disco. Não é exagero quando dizem que Ventura é ousado e ambicioso por mostrar a banda de peito aberto sem medo de ser piegas. Com sonoridade ímpar, flertando com o rock e mpb, indo na contramão do usual, com muita guitarra e metais, arranjos e melodias fortes e requintadas. Possui 15 músicas num total 51 minutos, que se complementam, mesmo sendo escritas e interpretadas por pessoas distintas. Ganhou certificado de disco de ouro com a venda de 100.000 cópias pela Associação Brasileira dos Produtores de Discos (ABPD), no Brasil. Foi eleito o melhor disco brasileiro de todos os tempos em 2012, de acordo com uma pesquisa feita pelo Estadão. E também foi considerado pela Rolling Stone Brasil como o 68º maior disco brasileiro. Quem sou eu para discordar?

Produzido por Alexandre Kassin e lançado pela BMG, a pré-produção foi no Sítio Remanso, em Petrópolis (RJ), entre outubro e dezembro de 2002. No DVD do show no Cine Íris, da turnê do Ventura, tem o documentário Além do que se vê, que mostra os bastidores e uma série de detalhes, versões demos e coisas interessantes a respeito de cada música. Uma curiosidade, antes chamava-se “Bonança“, mas por conta do imprevisto de ter sido o primeiro disco nacional a vazar na internet antes do lançamento oficial resolveram mudar algumas coisas, incluindo o nome. Na verdade, o que vazou foram os ensaios da pré-produção com arranjos, letras e até melodias diferentes.

Além de todas as nuances que permeiam o disco, as letras compõem escalas dos mais variados sentimentos que falam de amor e dor com a mesma intensidade, e contam histórias que a gente acaba se identificando de alguma forma. São letras simples e verdadeiras que falam do cotidiano, amor, família, inquietações, angústias e insegurança de forma leve e sincera.

Abrir um parêntese aqui para tecer breve comentário sobre minha faixa favorita, que não é “Além do que se vê”, mesmo eu tendo tatuado uma referência a ela, e sim “Do Sétimo Andar”, cercada de polêmica por conta de sua interpretação.  A referência da tatuagem de “Além do que se vê” é a parte dos metais em forma de partitura com a gaivota da capa do disco. E por que tatuei o trecho de uma canção que não é a minha favorita? Porque acredito que ela tem uma energia mais positiva e mais intimista, pois fala do amor entre mãe e filho, família, essas coisas.

Antes de estrar na tão controversa “Do Sétimo Andar”, aproveitando que estou falando do Rodrigo Amarante, quero expressar minha gratidão por ele ter composto uma música absurdamente linda chamada “Último Romance“. É o tipo de música que faz a gente acreditar no amor verdadeiro, mesmo tendo se decepcionado várias vezes, independente da idade.

Agora sim, falando “Do Sétimo Andar”. Essa canção mostra muito a característica lírica do Amarante, uma mistura do poético com o prosaico, algumas pitadas de crônicas para descrever o cotidiano de pessoas que não conhecemos, situações que não vivemos e que nos fazem refletir de um jeito simples. Sobre a polêmica da letra, vale lembrar que no documentário citado anteriormente o nome dela aparece como “A Mãe do Mendigo”. Em um show que Rodrigo Amarante toca com a banda Cidadão Instigado, quando chega na parte “e foi difícil ter que te levar àquele lugar. Como é que hoje se diz?”, ele completa dizendo: “manicômio!” Também já surgiu polêmica que seria para um cachorro que fugiu. E mais, já li por aí que “Primeiro Andar”, do disco 4, é um possível complemento para ela. Confesso que cheguei a pensar que se tratava de um cachorro que fugiu, antes de ver o documentário. Depois tudo encaixou de maneira simples!

E a história de “Conversa de Botas Batidas”? A curiosidade que cerca essa música é muito interessante porque não tem nada evidente até conhecermos sua história. É quando sua sonoridade ganha carga emocional ainda mais forte. A canção fala da situação real de um prédio que desabou no Rio de Janeiro e na morte de um casal de idosos. Ao ouvirem os sons dos estalos, funcionários e hóspedes saíram do prédio. O porteiro estava saindo e lembrou-se do casal que ocupava um dos quartos. Ele disse que interfonou e até chegou a bater na porta, mas como não houve resposta, desistiu e saiu. Ninguém sabe se eles não quiseram abrir para fugir de um flagrante ou resolveram morrer juntos. Ambos foram encontrados nus e abraçados nos escombros do que seria uma cama. De acordo com o próprio Marcelo Camelo, “Conversa de botas batidas é um diálogo final de um casal cansado de fugir e se esconder, e a alternativa escolhida entre eles foi a de se amar até morrer para viverem juntos no céu”.

Coloque o disco para tocar, abra a janela, deixe o som vazar pra rua e o sol entrar. Ventura é sorte para quem quer ver, é fortuna para quem a espera. As músicas seguem apenas o norte que aponta o coração. Enquanto se ouve o disco dá vontade de içar uma vela à espera de um vento favorável, um vento bom que leve adiante…

Embalado no trecho acima, certa vez tentei protagonizar uma cena seguindo a ideia da capa. Estava em Itaipuaçu, município de Maricá, região metropolitana do Rio de Janeiro, quando vi um pequeno barco naquele mar imenso e pensei na capa do disco. Pedi para minha namorada tirar uma foto minha de costas olhando para o barco no mar diante daquela calmaria momentânea. A calmaria não durou muito, pois a onda me botou pra correr dali bem rápido.

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“De onde vem a calma…” — Foto: Milena D’Araújo

Goste ou não, para o bem ou para o mal, a banda deixou seus frutos. Teve influência direta na criação de uma nova geração da MPB, fazendo essa galera buscar inspiração nas raízes da música brasileira. A questão é que às vezes precisamos descer do nosso palco soberano e olhar do meio da plateia para termos a dimensão do que acontece ao redor. O quarteto carioca mostrou que é possível ir na contramão do mainstream e ser honesto fazendo música sem amarras com grande sensibilidade ao ponto de criar raízes, mesmo após seu fim.

A banda não está mais na ativa, não precisa mais tocar no rádio e nem aparecer na TV para continuar viva para seus milhares de fãs. Eles entraram em hiato em 2007, e de lá pra cá já se reuniram algumas vezes para shows e turnês comemorativas com intenção de tirar os fãs da embriaguez nostálgica e ganhar uma grana, claro.

Ventura é um disco para pensar no tempo que irremediavelmente passa e no que ainda está por vir. Um passado que se mantém presente, sem legendas ou certo e errado. É um convite, uma página em branco e uma interrogação que encontra diferentes respostas. Qual a sua?

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