A cultura popular, a ciência e listas infinitas da internet costumam retratar os 30 anos como melhor fase da vida. Livre da insegurança financeira e pessoal, rodeado de maturidade aliado ao retorno de Saturno, liberdade e responsabilidade. É nessa fase que a vida promove estabilidade, ou pelo menos deveria seguir esse curso, na teoria. Por volta dos 30, também surgem as crises existenciais, preocupação com a proximidade dos 40 e certa insatisfação com o emprego. Falando em termos padrões, fora as situações que fogem do controle.
Produzido por Paul Lani e Dave Mustaine, lançado em janeiro de 1988 pela Capitol Records, o terceiro trabalho de estúdio do Megadeth, So Far, So Good… So What!, sempre foi subestimado. E até hoje não consigo entender o que leva alguém a ainda pensar assim, mesmo após todo esse tempo. Não chega a ser um trabalho brilhante, mas também não pode ser subestimado ao ponto de descartar da sua discografia. E, para quem não gosta, paciência. Continue com sua cabeça dura e hermética de 30 anos atrás.
Tudo bem que o ano de lançamento foi acompanhado por algumas obras incontestáveis do rock/metal. Iron Maiden lançando seu sétimo álbum, o conceitual Seventh Son of a Seventh Son; Slayer com o emblemático South of Heaven; Metallica também com o conceitual …And Justice for All, após a morte de Cliff Burton; Guns N’ Roses lançou o premiado álbum GN’R Lies e fez seu primeiro grande show, transmitido ao vivo pela MTV.
Será que So far, So Good… So What! foi ofuscado de alguma forma ou é realmente tão abaixo do esperado quando comparado aos lançamentos das bandas citadas? Apesar de todos os transtornos, conflitos internos e loucuras de Dave Mustaine (vocalista/guitarrista), considero próximo da mesma linha de Killing Is My Business… and Business Is Good! e Peace Sells… But Who’s Buying? Não tem a mesma pegada e vigor que os anteriores, mas é trash com força bruta, raiva e muita energia.
Falar uma coisa que sempre me intrigou. Já prestaram atenção como os três primeiros discos têm reticências e sinais de pontuação? Creio que Mustaine também queria expressar através da escrita suas emoções, intenções e anseios. Coincidência ou não, é algo que até hoje não consegui descobrir.
Se até hoje o relacionamento da banda com Mustaine é complicado, imagina naquela época após dispensa do Metallica, quando transpirava raiva pelos poros e vivia sob forte dependência de drogas e álcool. Tanto é que ele foi preso com vários tipos de drogas injetáveis e acabou sendo internado numa clínica de reabilitação, causando assim a separação da nova formação logo após o lançamento do disco. Jeff Young (guitarra) e Chuck Behler (bateria) saíram, permanecendo apenas David Ellefson (baixo) que estava desde o início. Chris Poland e Gar Samuelson foram demitidos porque venderam todo equipamento do Mustaine para comprar drogas.
Alguns críticos e fãs não ficaram muito satisfeitos com o resultado, afirmando ser um trabalho fraco, forçado e beirando a autoparódia. Ninguém é obrigado a gostar do disco, mas volte 30 anos e tente reconhecer o esforço que a banda fez quando gravou botando toda sua alma nele, expurgando todos os demônios interiores. É até compreensível comparar um trabalho ao outro, porém injusto na maioria das vezes. É algo que tenho me policiado sempre que possível, pois ao longo dos anos aprendi a considerar as alternativas quando penso em fazer alguma análise crítica nesse sentido.
Esse não foi o primeiro disco que tive contato com o Megadeth. Conheci através do Rust in Peace. Curioso que cheguei a ouvir antes o Peace Sells. Vamos relevar a falta de acesso quando você mora numa cidade do interior do Pará nos anos 90. Antes da MTV chegar por lá, a gente recebia novidades com uns dois ou três anos de atraso.
Sobre algumas músicas…
Olhe para 1988, volte trinta e poucas casas, veja todas as mudanças que o mundo sofreu e faça uma reflexão. Você continua achando So far, So Good… So What! subestimado, sem brilho e forçado? É um disco de transição, com oscilações entre algumas faixas. Mesmo não sendo uma obra-prima, teve a infelicidade de estar entre dois trabalhos renomados, Peace Sells… e Rust in Peace. Mas é um bom álbum e ponto.
O cover para “Anarchy In The U.K.” dos Sex Pistols, foi a música mais ridicularizada e odiada por unanimidade de críticos e fãs. Até entendo que ela ficou meio perdida na proposta do disco, poderia ter sido inserida como faixa bônus no final e provavelmente ficaria no anonimato. Talvez não teria recebido tantas críticas negativas mesmo com alguns trechos da letra trocados. Bem, ela soa dentro do que espero quando uma banda faz um bom cover. Gosto quando a banda imprime sua identidade e não deixa a essência da música original de fora. Algumas bandas fazem isso da melhor maneira possível, Metallica é uma delas.
O ápice fica por conta da linda, sombria e angustiante, com riffs que cheiram a morte, “In My Darkest Hour”. Embora tenha sido escrita quando Dave Mustaine soube da morte do baixista do Metallica, Cliff Burton, a letra não tem ligação direta com morte, retrata brigas com uma ex-namorada da época e também a luta contínua contra alcoolismo e vício em drogas. A música tem uma das introduções mais expressivas do metal, figurando ao lado de “For Whom The Bell Tolls” e “One” do Metallica.
E por fim, literalmente a última faixa, tem a pesada, raivosa e indigesta “Hook In Your Mouth”, minha preferida. É uma forte crítica ao PMRC (Parents Music Resource Center), ou algo como “centro de recursos musicais para os pais”. Um órgão norte americano que julga músicas consideradas impróprias e obriga artistas e bandas estamparem o selo “Explicit Lyrics’’ (Letras Explícitas) nas capas de seus discos. O objetivo seria orientar o “cidadão de bem” a lutar por um mercado musical livre das “imoralidades”.
“A censura percorre águas rasas e profundas mostrando suas garras como isca na boca.” Mustaine vocifera esses versos contra quem se prevalece de leis e prega pela moral e bons costumes, como o caso do PMRC, formado nos Estados Unidos em 1985. Se pensarmos bem, o público do rock e heavy metal, tanto fãs quanto bandas, são muito conservadores. A diferença é que produzem e consomem o conteúdo e são extremamente contra atitudes progressistas na sociedade.
Sobre o PMRC, vale relembrar a emblemática audição pública no Senado dos EUA, em setembro de 1985. Uma comissão chamada de “Washington Wives”, ou “Esposas de Washington”, encabeçada por Tipper Gore, esposa do senador e futuro vice-presidente Al Gore, convocou alguns músicos que tiveram suas músicas censuradas para expor seus pontos de vistas e, certamente seriam questionados pelos senadores para embasamento de um futuro projeto de lei. Três músicos estiveram presentes naquele dia, John Denver, Frank Zappa e Dee Snider. Dos três, Dee Snider foi com fome naquele dia, pois jantou com gosto aqueles malditos conservadores. Foi histórico!
Destoando dos outros dois que estavam de terno, Dee Snider chegou de maquiagem nos olhos, jaqueta e camiseta regata, calças jeans e cinto de tachinhas. Os engravatados não o levaram a sério, achavam estar diante de um palhaço maquiado e sem senso de argumentação. Ele rebateu cada acusação com firmeza, inteligência, calma e pitadas de humor. Fez um discurso articulado e apaixonado defendendo o direito à liberdade de expressão e artística de todos os músicos.
A música mexe com a imaginação das pessoas e as faz pensar o que quiserem. Essa música fala sobre uma cirurgia na garganta de um integrante da banda, o meu guitarrrista Eddie Ojeta e o medo que ele tinha dela. A Sra. Gore procurou sadomasoquismo na música e o encontrou. Quem procurar referências cirúrgicas também irá encontrá-las.
Depois disso, ouça com mais atenção “Hook in Mouth”, que é um encerramento perfeito para este álbum tão subestimado. Na verdade, ouça o disco inteiro sem precisar estar em 1988 para fazer isso.