A década de 2010 foi o sustentáculo inicial para as principais transformações que vivemos hoje mundo afora. Uma década marcada por uma profunda crise do capitalismo mundial cujos efeitos ainda vivemos, pelo fim das teorias e interpretações, pressa por liberdade, encontros e desencontros, sentimentos efêmeros mudando numa velocidade instantânea. Em tempos de modernidade líquida, a única certeza da sociedade é a convicção de que tudo vai mudar a qualquer momento. Como disse o sociólogo polônes Zygmunt Bauman, são características da modernidade líquida, termo usado para definir os tempos atuais, também conhecidos como pós-modernidade.

As músicas da década começaram a dialogar com as características da pós-modernidade, com um som que olhava mais para dentro em busca de respostas rápidas. Um encorajamento para que os sentimentos, verdades e crises interiores fossem expostos e não ficassem velados. Por isso começamos a presenciar um forte crescimento de desabafos, insatisfações e frustrações nas redes sociais, através de textos ou fotos, algo como um exercício de terapia no divã.

Na indústria musical, muita coisa aconteceu a partir de 2010. A cultura da música pop deu um grande passo influenciada pelas referências visuais e estéticas de décadas anteriores. Novos formatos de riffs foram surgindo e sendo incorporados ao rock, pop, rap e outros, proporcionando a muitos artistas e bandas a exploração de novas possibilidades musicais. A explosão dos serviços de streaming transformou a maneira de consumir conteúdo online, e esse sistema de distribuição contribuiu bastante para a divulgação de músicas, vídeos ou filmes de modo instantâneo.

Em 2011, ano de lançamento do oitavo disco da banda japonesa Dir En Grey, o mundo vivia uma efervescência de ordem geopolítica mundial. Após a crise de 2008, uma série de revoltas populares eclodiram em mais de 10 países no Oriente Médio e na região norte da África, conhecidas como Primavera Árabe, um período de transformações históricas nos rumos da política mundial. Os movimentos que lideravam as revoltas culpavam os governos vigentes pela crise e lutavam por mudanças. No entanto, o processo revolucionário nesses países foi derrotado por diversos fatores, como a falta de estratégia e coesão entre os grupos envolvidos e falta de uma proposta de ruptura com o capitalismo, o que facilitou a já pesada manipulação imperialista estadunidense na região.

Em maio, após viver 10 anos escondido, Osama Bin Laden, o “grande inimigo” dos Estados Unidos, foi assassinado pelo governo de Barack Obama. Desde o início da década de 2000, os EUA acirraram sua política de invasão e ocupação do Afeganistão sob a sombra do atentado de 11 de setembro, o qual Bin Laden assumiu a autoria. Seu assassinato, no entanto, não significou o fim da interferência dos EUA no país, nem o fim da chamada “guerra ao terror”.

Em outubro, na Líbia, uma multidão enfurecida matou Muammar Kadafi, líder líbio que governou o país por mais de 40 anos. A revolta na Líbia, segundo a campanha midiática feita no período, era para trazer o fim da ditadura no país. A realidade, porém, se mostra mais complexa. Os inimigos internacionais de Kadafi, que adotava uma postura anti-imperialista, aproveitaram a situação do país após a II Guerra do Golfo para instigar a revolta, aumentar a repressão governamental e justificar uma intervenção. A destruição deixada pelos conflitos que se seguiram geraram um caos político e social sem precedentes.

O início da década de 2010 também ficou marcado por uma grave crise econômica mundial, consequência dos acontecimentos de 2008, afetando sobretudo os países da zona do Euro. No Brasil, vivíamos um momento diferente. O país era a bola da vez. Economia estável, sede da Copa do Mundo de 2014 e das Olimpíadas de 2016. Dilma Rousseff, a primeira mulher a chegar ao mais alto cargo do país, assumiu seu primeiro mandato como presidente com objetivo de continuar fazendo o Brasil crescer na economia com inclusão social. Uma continuidade do trabalho de seu antecessor, reafirmando o compromisso com o povo e defendendo a liberdade de expressão. Entretanto, sabemos o que aconteceu durante o seu segundo mandato em 2016. Um golpe articulado pelo Congresso, mídia, judiciário e mercado financeiro. O resto é história, e o golpe foi a porta para o desastre que vivemos hoje.

Para entender o DUM SPIRO SPERO em seu contexto mais imediato, temos que lembrar dos acontecimentos de 2011, no Japão, que antecederam o lançamento do disco. Neste ano, um terremoto de magnitude 9,0 na Escala Richter atingiu a costa nordeste do Japão, destruindo boa parte dessa região da ilha. As consequências do terremoto foram devastadoras: um tsunami atingiu o litoral do país, com ondas gigantes de até 10 metros de altura que arrastaram casas, carros, barcos, rodovias e tudo mais que havia pelo caminho. O tsunami causou um acidente na usina nuclear de Fukushima, uma explosão e o derretimento de três dos seis reatores da planta, provocando um vazamento radioativo significativo. A área foi totalmente evacuada, mas alguns funcionários da usina foram contaminados. Os trabalhos de limpeza e descontaminação da região continuam até hoje. Os números oficiais contam 100 mil mortos nessa tragédia, além de milhares de desaparecidos e desabrigados.

Diante deste cenário catastrófico, o Dir En Grey lançou um álbum que, diferentemente de seus antecessores, trouxe esperança no título e em algumas letras. Para uma banda que costumava abordar temas excessivamente sombrios, destacando nas músicas os elementos mais desprezíveis da sociedade e da natureza humana, foi uma mudança inesperada. A capa do álbum, feita pelo designer gráfico Koji Yoda, parceiro de longa data da banda, traz um cenário de bambus que transmite ideia de serenidade. Na cultura japonesa, diz-se que deuses moram nos troncos ocos dos bambus. Indo mais a fundo nos significados e misticismo da árvore, a sua flexibilidade está ligada à capacidade de adaptação e mudança, resistindo à fúria da tempestade, para retornar em seguida erguendo-se em toda sua grandiosidade.

No início da carreira, os membros do Dir En Grey tinham uma explicação para o nome que escolheram: Dir vem do alemão, En do francês, e Grey do inglês. Juntas, as palavras formam algo que pode ser traduzido como “pra você em cinza”. Eles queriam expressar que tanto a sonoridade quanto a estética da banda não são preto no branco, como dizem, mas estão em alguma área cinzenta. Anos mais tarde, o guitarrista Kaoru afirmou em entrevista que essa explicação já não faz sentido para eles, mas é um nome que soa certo por si só. Particularmente, gosto mais da explicação inicial. São justamente os tons de cinza que fazem do Dir En Grey uma das bandas mais interessantes que já escutei na vida.

A banda está na ativa desde a segunda metade dos anos 1990, produzindo discos e gravando DVDs com certa regularidade, mantendo sua formação original (o que tem se tornado raro entre as bandas de metal) de cinco membros: Kyo (vocal), Kaoru (guitarra), Die (guitarra), Toshiya (baixo) e Shinya (bateria). Inicialmente, eles eram classificados como uma banda de Visual Kei, um movimento musical surgido no Japão na década de 1980, caracterizado pelo uso de roupas e maquiagens elaboradas, pelo visual andrógino de seus adeptos, e pela musicalidade influenciada por diferentes gêneros, mas que não se encaixava em nenhuma das vertentes do rock. Ao longo do tempo, a sonoridade da banda (o estilo visual também) foi mudando, evoluindo, se tornando mais pesada, mais complexa, e mais difícil de categorizar. Sua música é eclética, pesada e sombria, e difícil de classificar em qualquer subgênero. Muitos classificam como Metal Alternativo, que é o mais próximo da sonoridade da banda.

O Dir En Grey tem um público grande e fiel em seu país de origem e sai poucas vezes de lá em turnê, no entanto sempre impressiona quando toca nos grandes e consagrados festivais de metal, ao lado de nomes de peso. Todos os membros da banda são músicos que tocam com rapidez e precisão, com destaque para o baixista Toshiya e o peso brutal que ele coloca em seu instrumento. Mas é sem sombra de dúvidas o vocalista, Kyo, que rouba a cena no palco e surpreende os desprevenidos que escutam a banda pela primeira vez. Eu, por exemplo, levei um tempo para acreditar que era o mesmo cara que fazia todas aquelas vozes! Eles tocaram no Brasil duas vezes, a primeira vez em 2009, no Maquinaria Festival, em São Paulo, (ainda vou comentar um fato sobre esse festival), depois retornaram em 2011 junto com a banda americana de metal alternativo 10 Years.

Conheci a banda somente em 2012. Na época, estava de certa forma “saturada” das bandas de metal que sempre escutei, e já estava há algum tempo explorando outras vertentes dentro do gênero. Me aproximei anos antes do metal industrial e do alternativo, mas buscava algo além, de preferência fora do eixo Europa – América do Norte. Foi então que comecei a ter contato com algumas bandas de Visual Kei, como BUCK-TICK, Malice Mizer e L’Arc~en~Ciel, e inevitavelmente cheguei no Dir En Grey. No entanto, a primeira música que eu escutei não foi exatamente da “fase visual kei” da banda, e sim a pesadíssima quinta faixa do álbum DUM SPIRO SPERO, cujo nome completo é “Yokusou Ni DREAMBOX’ Aruiwa Seijuku No Rinen To Tsumetai Ame” (sim, é tudo isso mesmo). Mais especificamente, estava escutando pelo YouTube uma playlist de bandas japonesas enquanto trabalhava, eu era estagiária na Universidade Federal do Amazonas (UFAM) no período. O vídeo em questão era essa versão abaixo.

Fui cativada pelos riffs iniciais na hora, e pela sombria linha de guitarra que acompanha os primeiros versos. Mas é claro que foram os vocais que prenderam minha atenção, me fizeram parar o trabalho por um momento e abrir a página do YouTube para prestar atenção naquilo. Eu não vou nem tentar explicar o que Kyo faz nessa música, mas eu tive um sentimento de “É ISSO!”. Era exatamente essa a sonoridade que eu estava buscando, e encontrei no Dir En Grey.

Passei a escutar a discografia da banda de trás pra frente, começando pelo lançamento mais recente, que era o próprio DUM SPIRO SPERO. A discografia completa só recentemente foi disponibilizada nas grandes plataformas de streaming, então eu recorri aos meios alternativos (vocês sabem quais). Coloquei esse álbum na memória do celular e escutava religiosamente no ônibus, no trabalho, enquanto fazia os trabalhos da faculdade, sempre que podia. Fiquei totalmente obcecada pelo Dir En Grey, e muito chateada por não ter conhecido a banda um ano antes, porque poderia ter tentado ver o show que eles fizeram em 2011, em São Bernardo do Campo, São Paulo. Inclusive meu companheiro esteve no Maquinaria Festival em 2009, mas não chegou a ver a banda ao vivo. Brinco com ele que se tivesse visto, teria me falado e iríamos juntos em 2011.

No mesmo ano que conheci a banda tive uma identificação tão profunda com DUM SPIRO SPERO, que tatuei essa expressão do latim na perna. Dum Spiro Spero significa algo como “enquanto há vida, há esperança”. Segue sendo uma das minhas tatuagens preferidas, tantos anos depois. Enfim, continuo na esperança da banda retornar ao Brasil, é um dos shows que preciso ver antes de morrer.

Tranquilidade em meio ao caos. Esperança de reconstrução em meio a destruição. Momentos de calmaria diante da força implacável na natureza. Essas contradições estão na essência das 14 faixas do disco. Por muitas vezes, os riffs das guitarras de Kaoru e Die nos fazem sentir como se estivéssemos no epicentro do terremoto, com o baixo e a bateria trazendo intensidade e os vocais rasgados adicionando boas doses de desordem nas músicas mais pesadas como “JUUYOKU” e “DECAYED CROW”. Em outros momentos, a banda nos oferta músicas mais calmas (que não deixam de ser pesadas), com belas linhas melódicas e vocais limpos, como as irretocáveis “LOTUS” e “VANITAS”.

Conhecer o Dir En Grey e devorar o DUM SPIRO SPERO da forma que eu fiz me trouxe muitas lições, a principal delas foi sair da bolha e buscar bandas de outras partes do mundo, que cantem em outras línguas, que tragam novas propostas sonoras e diferentes tipos de performances ao vivo. É uma banda para escutar e assistir de cabeça aberta. Não é aquela banda que vai agradar, à primeira vista, aquele fã de metal acostumado com riffs compactos, vocais austeros e performances estoicas. Aproveitando que a discografia está liberada e completinha nos serviços de streaming, vale a pena conferir o trabalho da banda. Que bom que cruzei com eles pelo caminho!

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *