*Colaboração: Milena Nogueira
Era 1991, ano de descobertas pessoais e musicais, saindo da ebulição da adolescência e mergulhando na vida adulta de cabeça erguida e olhos fechados, sedento por aventuras que essa fase da vida proporciona. Era como mergulhar em um oceano de possibilidades sem saber para onde nadar. Apesar de toda precariedade de informações da era pré-internet, a gente se virava como podia. Buscava informações na TV, no rádio e em revistas especializadas. Éramos jovens descobrindo a música pesada que vinha de fora.
E por falar no que vinha de fora, é importante contextualizar o cenário político, econômico e social da época para apresentar um panorama do Brasil e do mundo, já que o ano de 1991 marcou um momento crítico de nossa história recente: o fim da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, através de uma série de atos contra-revolucionários internos e externos.
O fim da URSS foi, à época, analisado por muitos como a derrota do socialismo diante da hegemonia capitalista, que passa a tomar força ao redor do mundo e, especialmente, na América Latina pós-ditaduras militares. Com o fim da URSS, o número de pobres no país aumentou, a economia e os salários diminuíram bruscamente.
O ano também ficou marcado pelo início dos bombardeios ao Iraque por parte de uma coligação de países liderada pelos Estados Unidos, com as bênçãos do Conselho de Segurança da ONU, naquela que ficou conhecida como a Primeira Guerra do Golfo. Tal guerra foi o prenúncio das décadas que se seguiram de agressões e invasões imperialistas no Oriente Médio.
O ano também marcou o início de uma inovação que moldou e mudou o mundo para sempre. Em agosto de 1991, Tim Berners-Lee, físico britânico, apresentou ao mundo o World Wide Web, o famoso “www”, ferramenta que revolucionou o uso da internet e que possibilitou o acesso do público a mesma. O primeiro site foi construído no CERN (Organização Europeia para a Pesquisa Nuclear), onde trabalhava, e foi ao ar em 1991. Hoje, a internet é o que conhecemos, consumimos e não vivemos sem. Obrigado, Berners-Lee!
O mundo estava mudando a passos largos, a tecnologia abria caminhos impactando por onde passava. A cultura pop ganhava nova cara e novos contornos. Tudo era novo e fresco como o ar matinal de um novo dia. Novas bandas e novos estilos surgiam de todos os lados. Grandes discos foram lançados, mudando os rumos da música, resistindo ao tempo e firmando seus nomes na história. Não falo apenas do rock e do metal, mas de gigantes do pop e bandas nacionais que também fizeram parte desse banquete musical delicioso e inesquecível.
No grunge e rock alternativo figuram nomes como: Nirvana com o sujo e influente Nevermind; Pearl Jam com seu fundamental disco de estreia Ten; Soundgarden como o raivoso e melódico Badmotorfinger e os veteranos do Red Hot Chili Peppers com o disco que colocou a banda nos holofotes do mainstream, Blood Sugar Sex Magik.
R.E.M. deu o famoso tiro que saiu pela culatra. Após seis discos consistentes e turnês mundo afora, a banda queria lançar um disco que soasse mais acústico, bem diferente do estilo alternativo. O resultado foi o excelente Out of Time, disco que vai além de “Losing My Religion”.
Gigantes do pop rock também deixaram sua marca. Prince com o ousado e despretensioso Diamonds & Pearls; Michael Jackson apresentou ao mundo Dangerous, seu oitavo álbum de estúdio, repleto de parcerias, grandes hits, simbolismo e um valor artístico grandioso que se sustenta até hoje. U2 se desprendeu das amarras e lançou Achtung Baby, um disco introspectivo, melódico e com ares megalomaníacos que ficou evidente na turnê de divulgação.
No cenário nacional, temos Titãs com o álbum mais polêmico de sua carreira e o último com a formação clássica da banda. Tudo Ao Mesmo Tempo Agora representa toda a sonoridade estética e crua da banda até ali. Legião Urbana lançou V, ironicamente seu quinto álbum de estúdio, com canções mais longas, lentas, introspectivas e um tanto filosóficas. No campo fértil da MPB, ainda temos Caetano Veloso com quase 50 anos de carreira se reinventando em Circulandô, e Marisa Monte com o tão aguardado Mais, seu segundo disco.
No rock e metal, Sepultura escancarou caminho com o estrondo apocalíptico de Arise. Guns N’ Roses se armou de ambição ao lançar de uma só vez dois discos, Use Your Illusion I & Use Your Illusion II, que marcou a ascensão e consequentemente a derrocada de uma das maiores bandas de rock da época. Ozzy Osboune ressurgiu renovado, após décadas de excessos, com o aclamado No More Tears. E por fim, Metallica com seu disco sem título, mais conhecido como Black Album, que, apesar de toda crítica por parte de alguns fãs mais conservadores, foi um divisor de águas na carreira da banda e tem seu capítulo marcado na história da música influenciando gerações após seu lançamento.
Lançado no dia 12 de agosto de 1991, o quinto disco de estúdio do Metallica, que leva o mesmo nome da banda, e ficou conhecido como Black Album pela icônica capa preta com a logo da banda no canto superior esquerdo e uma serpente no canto inferior direito, levou oito meses para ser concebido. Com uma mudança na sonoridade, o disco alcançou as paradas de sucesso e quebrou recordes de vendas colocando a bando no topo. James Hetfield (guitarra/vocal), Lars Ulrich (bateria), Kirk Hammett (guitarra) e Jason Newsted (baixo) uniram-se ao produtor Bob Rock, que antes havia produzido álbuns do The Cult, Mötley Crüe e David Lee Roth, para apresentar ao mundo o maior disco de metal de todos os tempos, pelo menos em vendas. O disco ganhou o Grammy de Melhor Álbum de Metal em 1992.
Sentíamos que ainda não havíamos gravado o nosso melhor disco, e que Bob Rock era a pessoa certa para nos ajudar nisso”.
Mudança significativa no som da banda, saiu de cena o velho trash metal do início de carreira e entrou de sola um som mais voltado para o heavy metal, mais lento, simples e pesado. Uma proposta mais comercial para alcançar um nicho de público fora das rodinhas de trash metal. A banda foi chamada de “vendida” por grande parte dos fãs mais antigos e conservadores. Cá entre nós, fã de metal é chato para um caralho. Quer que a banda sempre faça o que ele gosta e não mude, não experimente e não ouse. Tudo bem que a partir desse disco a banda escalou para uma fase bem turbulenta de sua carreira culminando quase no seu fim. Águas passadas, a banda retomou o prestígio de antes e está indo muito bem.
1991 também foi ano de Rock In Rio. Na época, eu ainda estava muito preso ao Guns N’ Roses e fiquei em estado de completo êxtase quando soube que eles iriam tocar na segunda edição do evento que aconteceu entre 18 e 27 de janeiro daquele ano. As únicas fontes de informações que a gente tinha disponível, como falei anteriormente, eram TV, rádio e revistas especializadas. Como eu estudava de manhã, antes de ir para a escola assistia o jornal matinal, quando chegava assistia o de meio-dia e a noite, antes de sair para vagabundar pela rua, em busca de qualquer novidade. Como a banda sempre estava envolvida em polêmicas, notícias é que não faltavam. Eu me maravilhava com toda confusão que a banda causava por onde passava, aquilo para um adolescente era uma injeção de adrenalina com pitadas de rebeldia sem causa nenhuma.
Minha rotina consistia em estudar, jogar bola, ajudar meu pai no comércio que ele tinha no mercado municipal, sair com amigos e ouvir muita música nas horas vagas, que não eram poucas. Na época eu nem bebia ainda, então tinha que encontrar alguma forma de descarregar os hormônios da juventude. Meu refúgio era a música. Me trancava no quarto e passava horas ouvindo meus discos preferidos gravados em fitas cassetes e olhando as letras copiadas de revistas ou encartes em um caderno que separei somente para isso. Algumas vezes praticava air drums, pois meu sonho era tocar bateria como Lars Ulrich. Sonho que foi abandonado quando descobri que tocar bateria de verdade não era tão fácil, o máximo que consegui foi arranhar no contrabaixo.
Eu e meus amigos, na faixa dos 15 e 16 anos, descobrindo o universo visceral do rock pesado, morando em uma cidade onde as informações chegavam com meses de atraso, cada oportunidade que surgia era agarrada como unhas e dentes. Quando o Black Album foi lançado em agosto, só tivemos acesso perto do fim do ano, quando um conhecido de um amigo nosso veio de férias da capital e trouxe o disco. Meu amigo emprestou, gravou do vinil para a fita cassete e cada um fez sua cópia. Agora, imagina a qualidade da fita, a cópia da cópia… Era algo tosco e sem qualidade que não nos incomodava de forma alguma.
Qualquer oportunidade a gente sentava para ouvir o disco na fita cassete que andava no bolso da calça. No intervalo das aulas íamos para a lanchonete da escola, comprávamos um refrigerante para fazer média e pedíamos para o “tio da cantina” botar a fita. Quando saíamos mais cedo da escola, a casa de algum amigo que morasse próximo era o covil momentâneo e perfeito para mais uma rodada de audição. Não havia bebida, cigarros e nem drogas, éramos jovens arrogantes e caretas acreditando que o mundo girava ao nosso redor. Nem era tanto assim, mas como morávamos em uma cidade pequena onde a música regional e popular era predominante, as pessoas olhavam enviesado julgando nosso comportamento e nos rotulavam de certas alcunhas que não vem ao caso mencionar. Ninguém ligava, a vida seguia seu ritmo no modo “foda-se” consciente.
Eles tinham quebrado uma barreira, mas ainda não estavam nas rádios mainstream. Quando vieram até mim eles estavam prontos para fazer esse salto para algo grande. Um bocado de pessoas pensa que eu mudei a banda. Não mudei. Suas cabeças já estavam mudadas quando os conheci.
Enquanto os discos anteriores traziam letras com temáticas voltadas para questões sociais, guerras, injustiças e críticas à sociedade norte-americana, no Black Album a banda destrancou a porta, olhou para dentro e deixou transparecer sentimentos nunca mostrados. No verso de “The Unforgiven” é possível perceber de forma clara tal liberdade introspectiva: “What I’ve felt / What I’ve known / Never shined through in what I’ve shown” (O que eu senti / O que eu soube / Nunca refletiu no que eu demonstrei). É uma das músicas mais lindas do disco para mim. Toda história com início, meio e fim sempre me deixou pensativo sobre a vida, como escolhas e não escolhas. Até hoje o videoclipe me impressiona, a criança crescendo na prisão, o adulto tentando sobreviver e o velho debilitado lutando por um fio de esperança. É o tipo de música que penetra as camadas do corpo, atormenta o coração e toca sutilmente a alma.
Foi o trabalho que culminou no amadurecimento da banda e escancarou as portas, já que era possível ouvir as músicas na programação normal das rádios, e não apenas na voltada para metal. Cinco das doze faixas foram lançadas como singles: “Enter Sandman”, “The Unforgiven”, “Nothing Else Matters”, “Wherever I May Roam” e “Sad But True”. Todas ganharam videoclipes que rodaram incessantemente na MTV na época, e ajudaram a transformar a banda numa das maiores do mundo. Esse é o primeiro disco a não ter uma música instrumental até aquele momento. “My Friend of Misey” seria uma música instrumental, mas a banda achou melhor inserir uma letra. Foi a melhor coisa que poderia ter acontecido.
“My Friend of Misey” não é um single e nem teve videoclipe, mas, na época, chamou minha atenção e de um grande amigo que, infelizmente, não está mais entre nós. Só a introdução do baixo lembrando Cliff Burton já era suficiente para estar entre as favoritas, então vem a letra questionando a atitude miserável do ser humano de pensar que tudo gira ao seu redor e que ele é o culpado pelos problemas do mundo. Frases como “They say the empty can rattles the most” (Eles dizem que a lata vazia chacoalha mais) e “One man’s fun is another’s hell” (A diversão de um homem é o inferno do outro) deixavam a gente embasbacado. Isso na cabeça de garotos no auge dos 16 anos com pretensões rebeldes que inventavam problemas era uma fartura. Sempre que ouço essa música lembro com muito carinho e saudade do “meu amigo da miséria”.
Esse amigo e eu moramos juntos por muito tempo quando chegamos aqui na capital em busca de oportunidades. Fizemos tantas coisas juntos das quais eu posso me orgulhar. Fomos juntos para nosso primeiro show do Metallica, aquele do Morumbi em 2010. Tocamos juntos numa banda cover de rock nacional, ele na guitarra e eu no baixo. Uma vez propomos tocar a introdução de “Sad But True” antes de emendar alguma música pesada dos Titãs que não lembro qual. O resultado ficou ótimo que repetimos algumas vezes. Esse era o máximo que podíamos chegar perto de tocar algo da banda naquele momento.
“Wherever I May Roam” é a minha música preferida do disco e minha segunda favorita da banda, a primeira é “Harvester of Sorrow” e já falei sobre ela aqui. Muito se deve ao meu constante desejo de tocar bateria como Lars e tocar air drums insanamente na época. Confesso que cheguei a copiar seu estilo algumas vezes, principalmente de como se vestia (risos de vergonha alheia). Quando ouvi pela primeira “Wherever I May Roam” senti vontade de pegar um carro e meter o pé na estrada, nem que fosse num carro de mão, já que nem bicicleta eu tinha. Metaforicamente falando, estou traduzindo a sensação que me arrebatou quando ouvi os primeiros riffs após a linda introdução na cítara. Eu e meus amigos queríamos levar a sério o trecho “Rover, wanderer, nomad, vagabond, call me what you will” (Viajante, andarilho, nômade, vagabundo, me chame do que quiser), mas não passava de arroubos de jovens que não tinham coragem sequer de sair de casa sem a permissão dos pais. Pretendo fazer uma tatuagem com esse trecho para eternizar esse momento tão importante da minha vida.
“Nothing Else Matters” é linda, sensível, introspectiva e muita gente aprendeu a tocá-la no violão. Tenho uma história um tanto curiosa a respeito disso. Comecei a tocar violão na minha cidade natal, até hoje ainda não terminei de aprender, e quando cheguei na capital tive bastante tempo para praticar.
Como eu morava próximo do centro e estava desempregado, sempre saía para dar uma volta quando o tédio batia na porta, o que era recorrente. Um dia estava sentando no banco de uma praça dando milho aos pombos mentalmente quando um jovem sentou ao meu lado com um violão. Ele começou a tocar, viu que eu estava prestando atenção e perguntou se eu tocava, falei que sim. Ele me deu o violão, dedilhei algo rapidinho que não lembro e em seguida comecei a tocar a introdução de “Nothing Else Matters”. Ele me olhou assustado e pediu pra parar porque essa era uma música feita para o demônio. Oi?!? Tentei argumentar falando a respeito do que se tratava a canção, mas não adiantou muito. Ele nem deu ouvidos e saiu apressado como o diabo fugindo da cruz. O rapaz era evangélico, na cabeça dele bandas de rock faziam música para o capiroto, como acontece até hoje.
É muito fácil assistir ao noticiário e escrever uma música sobre o que você viu. Escrever coisas de dentro é muito mais difícil do que escrever sobre a política, mas uma vez que sai, é muito mais fácil colocar peso nela, especialmente ao vivo.
O disco fez tanto sucesso que a banda lançou em agosto de 1992 um documentário. A Year and a Half in the Life of Metallica mostra sem restrições todo processo de gravação, produção e turnê do álbum. Produzido por Juliana Roberts e dirigido por Adam Dubin, o documentário é divido em duas partes. A primeira parte mostra a banda com Bob Rock trabalhando na produção do Black Álbum. A segunda parte apresenta a banda na gigantesca turnê de 14 meses Wherever We May Roam Tour.
Lembra do amigo que falei antes? Senta que lá vem mais histórias com a banda. Quando chegou por aqui o documentário A Year and a Half in the Life of Metallica em videocassete, não lembro o ano, esse meu amigo comprou. A gente assistia praticamente todo fim de semana tomando cerveja. Assistimos tanto que decoramos algumas falas e usávamos quando o momento pedia. Por exemplo, um dia eu estava acabado de ressaca deitado no sofá e meu amigo olhou pra mim e disse “os excessos de Vancouver te pegaram ontem à noite?” lembrando o Lars quando estava estirado no sofá do estúdio sofrendo do mesmo mal após uma noitada em Vancouver (EUA).
Um disco simples, melódico e pesado que soa muito bem, independente de gostar ou não. O Metallica simplificou tudo para fazer história e se tornar uma das maiores bandas do mundo. Tudo bem que a banda trilhou caminhos tortuosos e fez escolhas que até hoje respingam em sua biografia. Nada tão catastrófico que manche os capítulos de uma história que começou em 1981, quatro décadas atrás.
Mesmo após tantos anos, ainda sinto a mesma energia juvenil pulsar por dentro quando boto o disco para tocar, seja no streaming, vinil ou CD. Minha relação com ele vai além do formato, acordes, riffs, letras e melodias. Existe uma conexão tão forte entre tantos pontos da minha vida que não saberia medir em palavras. Foram momentos de descobertas, sonhos, amizades, escolhas e realizações quando olho pelas lentes do passado sem deixar de mirar o reflexo do futuro, pois é algo tão grandioso e acrônico.