Foto 1 (centro de Manaus) / Foto 2 (centro de SP)

As grandes cidades do século XIX, principalmente Paris e França, começaram a viver uma grande expansão urbana, crescendo em larga escala e adotando novos padrões de vida urbana diante de um recente cenário fruto da era da modernidade. O poeta francês Charles Baudelaire e o filósofo alemão Walter Benjamin descreveram um personagem diante desse novo ambiente: o flâneur, ou em português, o “andarilho”. 

Nascido em meio à industrialização, o flâneur perambula tranquilamente pelas ruas, sem pressa, observando e se atentando a cada detalhe pelo simples prazer de estar inserido naquele cenário sem ser notado. Geralmente em busca de uma nova percepção e tendo a cidade como fonte de inspiração, ele torna-se o oposto do sujeito consumido pela sociedade capitalista sempre com pressa para cumprir compromissos rotineiros ou comprar algo. Tendo as ruas como palco, os centros urbanos se tornam sua atração. 

Qual o mais próximo que podemos chegar do ideal de Baudelaire? A pressa cotidiana nos obriga a não prestar muita atenção aos detalhes, deixamos para depois ou nem isso. No atual cenário, com uma pandemia devastadora que nos põe em isolamento, interpretar o personagem descrito por Baudelaire torna-se impraticável fora dos limites do distanciamento social. Mas não impede de revisitar nas lembranças lugares antes explorados, paisagens contempladas a olho nu e, até mesmo, situações incomuns e novidades encontradas em lugares já conhecidos.

O ponto de partida para minha digressão, são as cidades que já visitei e a cidade que moro atualmente. Além das andanças observando as ruas, prédios, cotidiano e situações alheias aos outros, quero também falar sobre um prazer antigo de visitar lojas de discos, principalmente quando viajo. Não importa quantas vezes eu viaje para a mesma cidade, sempre dou um jeito de ir às mesmas lojas atrás de novidades. É como ir para escola, você conhece o lugar e as pessoas, tem o roteiro desenhado do que pode acontecer diariamente, mas vai todo dia com a expectativa de que algo novo aconteça. 

Não pretendo me considerar um flâneur, apenas quero fazer uma alusão ao fato que sempre procurei buscar novidades nos mesmos lugares, no caso as lojas de discos. Sempre consumi música, até quando não tinha um centavo no bolso. A rádio, os discos do meu pai e de amigos eram minha fonte de consumo. Quando mudei do interior para a capital e comecei trabalhar, o leque se abriu e as opções de locais e novidades pululavam na minha frente o tempo todo. Eu morava próximo ao centro da cidade, e assim que recebia meu salário, após pagar as despesas, fazia meu percurso rotineiro favorito. Antes de ir até às lojas, parava em todas as bancas de jornais que tinham no trajeto, olhava as revistas especializadas de música, folheava as que não estavam no plástico e comprava se tivesse alguma matéria interessante. Algumas bancas vendiam discos usados, como geralmente eu não tinha pressa, por isso gostava de ir sozinho, olhava atentamente todo material disponível para encontrar algo do meu interesse.

Parte do acervo de discos e CDs do Sebo do Messias (SP)

Abastecia o tocador de músicas da atualidade, fosse discman ou mp3, para me acompanhar em silêncio por fora, mas imerso a tantos sons e melodias por dentro. Com o percurso mentalmente traçado seguia rumo às lojas em busca do pote de ouro no final do arco-íris. Quase sempre o pote era inalcançável, pois como CDs estavam em alta, os preços não eram tão acessíveis, principalmente lançamentos. Por isso gostava de ir às lojas que vendiam usados, como O Arqueólogo, que infelizmente fechou, e Disco Laser, que às duras penas ainda está na ativa. Bemol, grande loja de departamentos da região Norte, dispunha de um acervo de encher os olhos de qualquer amante de música, principalmente rock e metal, que era onde eu me encaixava. Comprar um disco novo era deixar de comprar uns três usados, isso sim, era uma escolha difícil. Comprar um disco novo dependia muito da relevância do artista, do conteúdo e da qualidade do material, além da condição financeira na ocasião. Foi a partir dessa época, por volta de 1998, que comecei minha ambiciosa coleção. 

As andanças pelo centro de alguma forma acabavam em alguma loja de discos. Eu era o paradoxo do flâneur (desculpa Baudelaire) que geralmente caminha pelas ruas sem intenção de conseguir algo ou de ir para algum lugar. O ponto onde me encaixava era que raramente eu estava com pressa. Nem sempre saia com intenção de ir atrás de algo, como tudo era muito perto eu acabava esticando o trajeto até a loja mais próxima para dar uma olhada corriqueira. Quando trabalhava pela parte da tarde ou da noite, habitualmente flanava pela parte da manhã que era mais agradável e tranquilo, distante da correria apressada do horário de pico.

Comprando em lojas, sites na internet e com alguns amigos cheguei a ter uma coleção absurda. O antagonismo da flanagem dentro do meu ser ansiava por mais. Lançamentos, raridades, importados e discografia de artistas que eu curtia. Andava com meu case de CDs, discman e som para todo canto. Como morava alugado, assim que surgia mudança a primeira coisa a ser empacotada atenciosamente eram os discos. Quando comprei uma casa para morar com uma pessoa, eles me acompanharam sem cerimônia nenhuma. Anos depois, quando separei eles também se mudaram de mala e cuia comigo. Foi uma fase obscura da minha vida. Flanar tornava-se quase raro, comprar disco mais escasso ainda. O espírito errante que habitava meu ser ansiava por aqueles momentos corriqueiros de prazer que não mais existiam. 

O cenário não mudava e, no momento que o cerco se fechou, me achei pressionado entre as quatro paredes do meu obscuro universo. Não havia outro caminho a não ser vender a maioria dos discos para poder sair momentaneamente do buraco que havia caído. Até hoje avalio se não foi uma decisão impulsiva. Com angústia no coração e na alma escolhi alguns entre tantos para ficar e decidi vender o restante.  Naquela hora não prestei atenção em nada ao meu redor, foram momentos de absoluta escuridão. Resolvi vender na loja O Arqueólogo, pois era a loja que pagava um pouco melhor. De cabeça baixa organizei tudo dentro de uma bolsa de viagem, em silêncio, evitando até meus pensamentos. O mesmo trajeto que habitualmente eu fazia com sossego até a loja na expectativa de levar algo para casa, para minha vida, na ocasião iria fazer com ânsia levando uma parte da minha vida numa bolsa cheia de histórias para deixar por lá.

Com o passar do tempo, as coisas foram se encaixando como num jogo de Tetris quando você está seguro e atento, fui retomando gradativamente minhas flanagens e compras habituais de discos. Procurava promoções pela internet, em lojas físicas de novos e usados, com amigos, e também rastreava pessoas que estavam se desfazendo de suas coleções. Inclusive herdei a modesta coleção da minha atual companheira. Comecei a viajar bastante para shows, principalmente para São Paulo e Rio de Janeiro, e era parte obrigatória do roteiro flanar pela cidade parando em lojas de discos. Sempre que retornava para casa trazia na mala novas histórias para ouvir repetidas vezes. No Rio, os sebos são maravilhosos, e tem também as feiras pelas ruas nos fins de semana. Em São Paulo, gosto de perambular pelas lojas da Galeria do Rock e em um mini shopping, na República, com lojas sensacionais, incluindo minha favorita Locomotiva Discos.

Andar interno da Galeria do Rock (SP)

Hoje possuo uma coleção de discos considerável, inclusive até cheguei a comprar uns poucos discos que eu havia vendido na época do desespero em lojas de usados. Sei disso por conta de detalhes nos encartes que jamais esqueceria. No quadro atual, pandemia e isolamento social, não há opção mais viável do que ficar seguro em casa e sair quando for de extrema necessidade. Confesso que sinto falta de flanar pela cidade, olhar os transeuntes, prédios, sentir o vento, respirar o ar poluído pela fumaça dos carros, ouvir inúmeros barulhos que só grandes cidades nos oferecem. E também parar em alguma loja de discos, as poucas que ainda existem, e encontrar algo novo entre tanta coisa velha e conhecida. Viajar então, totalmente fora de questão. A única viagem possível no momento é pegar um disco, colocar os fones, apagar as luzes, fechar os olhos e viajar na contemplação da música. Ou botar o disco para tocar, físico ou não, e fazer qualquer tarefa cotidiana enquanto o som transcende cada atmosfera do corpo e da mente.

Não queria entrar no tema tecnologia, mas não tem como falar de formato físico da música e não tocar no assunto. Quando o mp3 surgiu e começou a engolir o formato físico gradualmente, a indústria fonográfica sentiu o tombo, mas não desabou. Com avanço frenético do streaming, o baque foi como um tsunami que chegou devorando o que havia pela frente. Presenciamos grandes lojas sendo obrigadas a fechar suas sessões de música, incluindo Bemol e Saraiva, enquanto os pequenos lojistas tentam arduamente sobreviver em meio a um mercado que agoniza. Acredito que no futuro o formato CD vai retomar sua notoriedade assim como o disco de vinil se destaca hoje em qualquer prateleira, não pelo saudosismo e sim por questão de preferência.

Novos formatos e novas formas de consumir música fazem parte da nossa rotina. De forma volúvel e flexível vamos adaptando nosso comportamento e características a cada cenário que surge como um camaleão. Estamos tão acostumados com a pressa cotidiana, com a urgência de nossas tarefas que chega a ser praticamente impossível separar algum tempo, desligar o mundo lá fora e saborear um disco do início ao fim numa plenitude existencial. Sempre estamos fazendo algo concomitantemente. Seja dirigindo, trabalhando, conversando, bebendo, fazendo faxina, cozinhando ou lavando louça. Seria como a jornada de um flâneur que percorre o mesmo trajeto cotidianamente, mas sempre encontra algo diferente em meio ao trivial, a mais pura essência da contemplação. 

P.S.: Texto em homenagem ao Dia do Lojista de CD, comemorado dia 17 de abril. Sabemos que os poucos que ainda existem e tentam sobreviver perante um mercado em colapso, principalmente no atual contexto, merecem muito mais do que uma simples homenagem.

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