O álbum de estreia da banda King Crimson, In The Court of The Crimson King, foi lançado em 10 de outubro de 1969, um ano emblemático para o rock progressivo e para o mundo, que estava em plena Guerra Fria. O conflito aconteceu entre 1947 e 1991 e foi responsável pela polarização mundial, gerando uma série de pequenos embates entre EUA e URSS. Essa polarização (detesto essa palavra, mas não vejo outra forma de descrever o fato) gerou um conflito político-ideológico entre as duas nações e seus respectivos blocos, cada um defendendo seus interesses e ideologias. Embora os dois países não tenham declarado guerra armada abertamente, existem muitas mortes que ninguém contou. A busca de informação sobre o inimigo deixou vítimas fatais pelo caminho.
Em janeiro, Richard Nixon tomou posse como presidente dos Estados Unidos, implantando políticas conservadoras e anticomunistas, e inaugurando a chamada “Guerra às Drogas”, iniciando um processo de encarceramento em massa da população pobre dos EUA, que severamente comparou o consumidor ao traficante, taxando todos de criminosos. A “guerra contra as drogas” constitui a máxima expressão de uma política conservadora repressiva, foi criada com o objetivo de perseguir os movimentos sociais, principalmente o movimento antiguerra e os direitos da população negra no país.
No início de setembro, a Rede Globo estreou o Jornal Nacional, o primeiro telejornal que abrangia todo o território nacional. Neste período, a emissora fez acordo com a ditadura militar, participou da articulação do golpe e se beneficiou muito do seu apoio. Roberto Marinho, tinha o perfil de ser uma pessoa ligada ao poder e era o dono da opinião pública na época, já que Assis Chateaubriand estava doente e seu grupo Diários Associados estava em decadência. A Globo foi pensada como líder de um aparato de comunicação para atender o interesse da opinião pública. Nada tão diferente do que estamos acostumados a ver até hoje.
No fim de outubro, Emílio Garrastazu Médici tomou posse como presidente do Brasil por meio de eleições indiretas. Médici foi o terceiro presidente militar da ditadura e seu governo marcou um período em que o regime foi mais repressivo e brutal, foram os chamados “anos de chumbo”. Enquanto a tortura, a violência brutal e os gritos ecoavam pelas ruas e porões, o governo ditatorial transmitia ao povo a imagem de um país coerente, emergente e rumo ao futuro. Promovia campanhas ufanistas com slogans como “Brasil, ame-o ou deixe-o“, nada diferente de “Brasil acima de tudo e Deus acima de todos“, que mostravam um país ideal fantasiado para esconder o atraso econômico e social, repressão e censura.
Em 4 de novembro, o político, escritor e revolucionário, Carlos Marighella, foi executado a tiros em uma emboscada por agentes do DOPS/SP. Marighella foi atingido por cinco tiros, um deles disparado a menos de 8 centímetros de distância do peito. O líder da Ação Libertadora Nacional era considerado pela ditadura militar o seu inimigo número um. Sua busca e perseguição envolveu praticamente todo o aparato repressivo. Séculos após seu assassinato, a memória do militante comunista segue viva e inspira gerações na luta pela libertação nacional. Tanto inspira quanto incomoda, já que o filme “Marighella”, dirigido por Wagner Moura, ainda não estreou em solo nacional por questões políticas. O governo atual é um reflexo descarado da época ditatorial, fazendo da arte e do pensamento crítico suas primeiras vítimas.
E no cenário musical, o ano de 1969 testemunhou a formação da banda inglesa de rock progressivo Supertramp, o lançamento de Abbey Road dos Beatles, que se tornaria seu álbum mais vendido. O lançamento do segundo disco de David Bowie (de mesmo nome) contendo a faixa “Space Oddity”, que conta a saga do Major Tom no espaço. O álbum de estreia da banda Led Zeppelin, apresentando um som mais pesado aos amantes do rock. O primeiro disco do Yes (de mesmo nome), com uma sonoridade pop diferenciada apontando para o rock progressivo. Tem também o lançamento de Tommy, a ópera rock sensacional do The Who, que talvez até hoje seja o mais importante álbum da banda.
Aqui no Brasil, não era diferente do que rolava lá fora, e algumas bandas e artistas faziam um som mais psicodélico, que somado ao movimento tropicalista, abordava os principais embates estéticos e políticos em meio a um cenário de grande turbulência social. Era a trilha sonora perfeita da contracultura no período. Mutantes, que, nessa época, estava entre as melhores bandas do mundo, lançou seu segundo trabalho de estúdio, simplesmente chamado “Mutantes”. Gilberto Gil veio com seu terceiro disco de mesmo nome, também conhecido como “Cérebro Eletrônico”. E temos Jorge Ben lançando seu sexto álbum, que recebe o mesmo nome do autor, com algumas faixas de sucesso, como “País Tropical”, “Que Pena (Ela Já Não Gosta Mais de Mim)” e “Charles Anjo 45”.
Em 5 de julho de 1969, os Rolling Stones fizeram, no Hyde Park de Londres, um show gratuito que atraiu um público estimado em 500 mil pessoas. A abertura ficou a cargo das bandas Family, Third Ear Band, o próprio King Crimson e outros artistas. Esse show seria para apresentar o novo guitarrista da banda, Mick Taylor, que entrou no lugar de Brian Jones. Mas a morte de Jones poucos dias antes do show, fez com que o evento se transformasse mais em um tributo à sua memória.
Brian Jones foi um dos fundadores do Rolling Stones e foi afastado em 1969 por causa da dependência de drogas. No dia 2 de julho do mesmo ano, três dias antes do evento em Hyde Park, Brian Jones foi encontrado morto na piscina de sua casa, na Inglaterra. Segundo relatos, ele estava sob efeito de drogas, teria sofrido uma crise de asma e supostamente se afogado. Até hoje sua morte é um mistério, cercada de perguntas sem respostas. Alguns dizem que foi assassinato. Alguns trechos da investigação sobre sua morte aparecerão em um documentário da Netflix, baseado no livro Who Killed Christopher Robin?, de Terry Rawlings.
Entre os dias 15 e 18 de agosto, foi realizado o antológico festival de Woodstock. Os produtores trouxeram bandas como Creedence Clearwater Revival, Janis Joplin, The Who, Jefferson Airplane e Jimi Hendrix, e o que era pra ser apenas um festival se tornou um marco de toda uma geração. Literalmente, os jovens do fim da década de 60 foram chamados de geração de Woodstock. O trânsito para chegar no festival era tão intenso que as pessoas começaram a deixar seus carros na estrada e ir a pé, e tanta gente compareceu que os produtores tiveram que deixar de cobrar ingresso. E, assim, foram três dias de muita música, muitas drogas e muita chuva, que se tornaram o ápice da contracultura no período.
Na contramão disso tudo, os Rolling Stones pagaram um preço alto com o desastroso concerto em Altamont, realizado em dezembro de 1969. Um jovem negro chamado Meredith Hunter foi assassinado diante das câmeras pelos Hells Angels, que foram contratados para fazer a segurança do show. O objetivo era capitalizar sobre o sucesso de Woodstock, seguindo toda aquela ideia de paz e amor, onde as pessoas sabiam se comportar e se ajudar em aglomerações. O que era pra ser um concerto transbordando paz e amor acabou se tornando um caos, o evento é apontado como o ponto final da contracultura dos anos 1960, e não há como escapar da dimensão racial da morte do jovem Meredith. Os Stones foram massacrados pela mídia, com razão. O integrante dos Hells Angels foi inocentado, como sempre acontece nesse sistema opressor e classista. Ou seja, para aqueles que achavam que a contracultura era o embrião da revolução, o fato ocorrido em Altamont foi apenas um lembrete de que a injustiça e o descaso social sempre estarão prontos para nos sufocar.
E para fechar a parte de contexto histórico, em agosto de 1969 a atriz Sharon Tate, esposa do cineasta Roman Polanski, foi brutalmente assassinada por seguidores de Charles Manson. Depois da meia-noite, quatro seguidores de Manson invadiram a residência do casal, em Los Angeles, e mataram a facadas a atriz, grávida de oito meses, e mais cinco pessoas que estavam no local. O diretor, à época, estava em Londres. Tanto séculos depois dessa chacina, a figura de Manson continua despertando interesse e repulsa na mesma proporção, como pode ser visto em séries e filmes lançados ao longo dos anos, por exemplo, o último filme do Tarantino, “Era uma vez em… Hollywood”, que retrata a cena do assassinato.
King Crimson é uma banda inglesa formada pelo guitarrista Robert Fripp e pelo baterista Michael Giles. Seu estilo musical é categorizado como rock progressivo, mas sua sonoridade carrega várias influências musicais diferentes, como jazz, música erudita, new wave, heavy metal e folk. O trabalho da banda tem como diferencial um som experimental, combinando instrumentos de sopro com guitarras distorcidas levemente pesadas, mudança nas fórmulas do compasso durante as músicas, longos instrumentais e muita improvisação.
O nome da banda, que pode ser traduzido como o “Rei Vermelho” ou “Rei Escarlate” é, segundo o guitarrista Robert Fripp, uma referência a Belzebu, um dos sete príncipes do inferno (lá vem a capirotagem). Fripp afirma que Belzebu é um anglicismo da frase árabe B’il Sabab, que significa “homem que ambiciona” ou “com uma causa”.
Não lembro em qual momento eu tive o primeiro contato com a banda, mas sei que a primeira coisa que me chamou a atenção foi a capa do disco. Ela virou uma referência para o rock progressivo: um pesadelo de cores vivas. Parecia ter transcendido a simples embalagem para se tornar arte, da mesma maneira que a música transcendia além das formas simplistas do pop da época. In the Court of the Crimson King abriu muitas portas para bandas como Yes, Emerson, Lake & Palmer, Pink Floyd e muito mais… E pensar que comecei a ouvir a banda por influência de Pink Floyd, por encontrar semelhanças em ambas as bandas.
A capa do álbum foi desenhada por Barry Godber, que na época era programador de computador e o único artista que os músicos conheciam. Eles pediram para Barry fazer algo que fosse se destacar nas lojas de disco, e Barry os entregou sua representação de um “21st Century Schizoid Man”, ou “homem esquizóide do século 21”, em alusão a primeira música, que traz uma crítica à Guerra do Vietnã e problemas da sociedade capitalista moderna. No encarte do álbum, um outro desenho de Barry representa o próprio Rei Escarlate. Infelizmente, o artista não viveu tempo suficiente para ver sua arte se tornar uma das mais icônicas do rock, pois faleceu em 1970, devido a um ataque cardíaco.
Para a gravação do álbum, a banda contava com Greg Lake (vocal e baixo), que depois fundou o Emerson, Lake & Palmer (o primeiro supergrupo do rock progressivo), Robert Fripp (guitarras), Ian McDonald (metais, pianos e backing vocals), Michael Giles (bateria e percussão) e Peter Sinfield (letrista). O disco chegou à terceira posição no Reino Unido e a 28ª na América, com boas vendas.
Trazendo um rock mais pesado com influências experimentais a seus extremos e utilizando-se da construção de “atmosferas” (como a atmosfera dissonante e louca de 21st Century Schizoid Man, ou a sonhadora e surreal de “I Talk To The Wind”), Fripp e companhia entregam um dos primeiríssimos álbuns de rock progressivo da História, e, sem dúvida, o mais importante. Neste período, o estilo iniciava sua “era de ouro”, com lançamentos de bandas como Jethro Tull, Yes, Led Zeppelin, Pink Floyd, The Moody Blues e tantas outras, consolidando o estilo ao longo da década de 70.
O espírito do tempo era de rebeldia e inconformismo para as juventudes mundo afora. As revoluções e contrarrevoluções da Guerra Fria, o medo de um conflito nuclear, o início da exploração espacial, o surgimento do movimento hippie em favor das liberdades sociais e culturais adicionam a psicodelia e os elementos experimentais à musicalidade do momento. E o In The Court of The Crimson King é uma obra que está absolutamente contextualizada neste espírito.
A faixa de abertura, “21st Century Schizoid Man”, tem saxofones jazzísticos, baterias surpreendentemente rápidas e complexas, uma linha de baixo bastante melodiosa e que se sobressai por toda a música. A guitarra de Fripp passa a sensação de caos e bizarrice de um futuro próximo que o King Crimson previu: marcado pela guerra, pelo desejo de consumo, pela paranoia, e pelo fim da valorização da arte. Não erraram muito não!
Com quase nove minutos, a faixa “Epitaph” traz a melodia de uma beleza lírico-poética, mas ao mesmo tempo uma sonoridade escurecida e totalmente melancólica. É impossível não ser completamente absorvido por ela, principalmente pela letra de Peter Sinfield, uma poesia esplêndida à deriva num mar de desesperança. Os vocais de Greg Lake, com uma interpretação angustiante e cheia de sentimento, mostram que uma música triste pode ser muito linda. Mas o destaque principal fica por conta do mellotron, de Ian McDonald, um instrumento de teclas que produzia um timbre diferenciado criando o clima sombrio e fúnebre da canção.
The yellow jester does not play / But gently pulls the strings
And smiles as the puppets dance / In the court of the crimson king
A música que também dá nome ao álbum, “The Court of The Crimson King”, sem dúvida a mais bonita do disco, é marcada pelo som do mellotron que flutua por toda ela, lindas flautas, guitarras e bateria, belíssimos vocais e backing vocals. Sim, beleza é o tema recorrente aqui, enquanto Greg Lake canta sobre cenas de uma fantasia medieval na Corte do Rei Escarlate.
Aqueles que buscam riffs, solos e baixo pesado não irão se decepcionar, assim como aqueles que gostam de som experimental e arranjos complexos. O álbum inteiro é intenso e brilhante. É um álbum épico! E, detalhe, tudo isso em apenas 45 minutos. Isso mesmo, In The Court Of The Crimson King é curto, tem apenas 5 músicas. Mas são 5 músicas que definiram toda uma geração musical e mudaram a história do rock para sempre.
Em seus 50 anos de existência, a banda gravou 13 álbuns de estúdio, 20 ao vivo e 22 músicos já passaram por ela. E não foram músicos anônimos não, e sim grandes medalhões que integraram muitas bandas de peso, como Yes, Asia, Uriah Heep, Talking Heads, entre outras. Hoje, Robert Fripp é o único membro da formação original. É considerado o líder persistente e entusiasta responsável por todas idas e vindas da banda. Como pode ser visto na última turnê que passou pelo Brasil, em 2019. A banda nunca havia pisado em solo brasileiro e acabou fazendo dois shows no mês de outubro: em São Paulo, dia 4, e no Rock In Rio, dia 6.
Sobre essa turnê, posso falar que Milena e eu chegamos muito perto de ver a banda. A gente tinha ingressos para os dias 4 e 6 do Rock In Rio, pois queríamos muito ver a turnê de despedida do Slayer, que iria tocar na noite do metal (sexta, dia 4) com Anthrax, Iron Maiden, Helloween e outros. Depois queríamos ver Muse e King Crimson (domingo, dia 6). Acabou ficando muito complicado para ir, pois o preço das passagens escalaram valores altíssimos, claro que deixamos para comprar em cima da hora, e tantas outras questões. Como não queríamos deixar de ver a última turnê do Slayer aproveitamos o show que eles marcaram para o dia 2 de outubro, no Espaço das Américas, em São Paulo. Vendemos facilmente os ingressos do Rock In Rio e viajamos para nos despedir da banda Infelizmente, por conta de compromissos com o sistema opressivo capitalista, não pudemos ficar até o dia 4, show do King Crimson, que também foi no Espaço das Américas.
Lamentamos muito não ter visto nenhum dos dois shows. É o tipo de acontecimento que não se perde, mas, infelizmente, perdemos duas oportunidades. Dá um certo sentimento de incompletude só de lembrar que a apresentação começava com “Drumsons”, uma peça para três baterias. Para essa turnê, a banda era composta por oito integrantes, incluindo três bateristas tocando ao mesmo tempo, como foi possível ver pela TV.