O quarto trabalho de estúdio da banda Faith no More, Angel Dust, quando foi lançado causou estranheza para a gravadora, críticos e para os próprios fãs. Hoje é considerado um dos discos mais influentes, apesar do espírito inquieto e ousado da banda. Mas, antes de começar a falar sobre ele, é preciso pautar alguns acontecimentos históricos que protagonizaram 1992, seu ano de lançamento, na esfera política, social e musical.

Em janeiro, rolou a terceira edição do festival Hollywood Rock em São Paulo, no Estádio do Pacaembu, e no Rio de Janeiro, no Sambódromo, e teve, como atrações internacionais, Living Colour, EMF, Seal, Jesus Jones, Skid Row e Extreme, e como atrações nacionais Lulu Santos, Titãs, Paralamas do Sucesso, Barão Vermelho e Cidade Negra. Como era transmitido pela TV, lembro de virar madrugada adentro aproveitando cada show e, no dia seguinte, comentar com os amigos na maior empolgação.

Em abril, aconteceu o A Concert For Life: The Freddie Mercury Tribute Concert for AIDS Awareness (Um Show Pela Vida: O Tributo a Freddie Mercury pela Consciência da AIDS) no Wembley Stadium. O concerto beneficente teve o objetivo de arrecadar fundos para ajudar portadores do vírus a mantê-lo sob controle. Vários nomes de peso participaram da causa e se apresentaram no concerto, como Metallica, Guns N’ Roses, David Bowie, Robert Plant e entre outros. Para assistir o evento, reunimos vários amigos da nossa bolha roqueira e assistimos todos na casa do único que tinha MTV.

Por falar em Metallica e Guns N’ Roses, nesse mesmo ano as duas bandas se uniram para sair numa turnê gigantesca que durou cerca de três meses. Inclusive foi durante essa turnê que James Hetfield, do Metallica, se queimou com fogos de artifício durante a música “Fade To Black“. Lembro de ver o episódio no documentário A Year and a Half in the Life of Metallica e ficar meio assustado com a cena.

E, para fechar com Guns N’Roses, em dezembro, a banda fez um show para 120 mil pessoas em São Paulo. Nossa, lembro perfeitamente da vontade absurda de querer estar nesse show. Só que na época eu tinha 17 anos, não tinha dinheiro no banco, nem parentes importantes e morava no interior.

Enquanto no cenário musical tudo transcorria bem, de forma rápida e abrindo caminhos para novas possibilidades, o mesmo não era possível afirmar no cenário político e social, particularmente aqui no Brasil.

Em agosto, milhares de manifestantes do chamado movimento dos Caras-Pintadas, saíram às ruas de todo o país para pedir a saída do presidente Fernando Collor de Mello, resultando no processo de impeachment em outubro e, consequentemente, na sua renúncia em dezembro do mesmo ano. Algo que reproduziram em 2013, articulando um projeto de golpe no país. Não preciso me alongar, já que todos convivem com as consequências.

No segundo dia do mês de outubro, o Massacre do Carandiru entrava para a história como um dos episódios mais sangrentos do país. Estima-se que ao menos 111 detentos foram assassinados durante uma ação policial desastrosa após uma rebelião na casa de detenção. Uma tragédia carregada de erros e controvérsias favorecendo os autores dessa barbárie, como sempre.

E por falar em massacre, em novembro, o candidato democrata Bill Clinton foi eleito presidente dos Estados Unidos. Em meio a tantos problemas econômicos, o republicano George H. W. Bush foi derrotado em uma tentativa de reeleição. Um rato empurrando outro pelo esgoto da sujeira travestida de maior democracia “assassina” do mundo.

O ano era 1993, e consigo recordar o momento quando vi o disco Angel Dust na minha frente pela primeira vez. Um amigo de um amigo meu havia chegado da capital com uma pilha de discos sensacionais. Era tanta novidade para uma garotada na faixa dos 17 anos, que estava começando a consumir rock e sofria as mazelas por morar no interior. Era muito difícil ter contato com novidades e lançamentos que corriam mundo afora. Tudo sempre chegava com certo atraso na nossa mão, isso quando chegava.

A banda Faith No More já era velha conhecida, principalmente por marcar presença frequentemente na MTV com os sucessos do antecessor The Real Thing, e vinham emplacando alguns clássicos de Angel Dust, com os vídeos de “Midlife Crisis“, “Small Victory” e “Easy”, cover dos Commodores, que ficou tão boa quanto a original. Aliás, o videoclipe dessa última é sensacional! Lembro que não tinha MTV em casa e sempre que saía da escola ia para casa de um amigo assistir. Naquela época, TV a cabo era artigo de luxo, tal qual telefone convencional. Além da rádio, a MTV era uma das poucas opções para ficar por dentro do que rolava no cenário musical.

A banda era formada por Mike Patton (vocal), Jim Martin (guitarra), Billy Gould (baixo), Roddy Bottum (teclados) e Mike Bordin (bateria). Angel Dust foi gravado pela Slash Records e produzido por Matt Wallace. Neste disco, a banda apostou num som menos comercial e mais prazeroso, um pouco complexo e experimental, porém dando sinais de evolução musical. Não é tão bom quanto seu antecessor, mas certeza que teve protagonismo quando trouxe elementos novos para o rock e inspirou muitas bandas, criando raízes para o new metal e influenciando bandas como Korn, System of a Down, Limp Bizkit, Slipknot, entre outras.

A beleza da capa do disco com fundo preto misturado a um azul-escuro sombrio e um cisne branco exalando elegância chamou muito minha atenção. E o que mais me intrigava era o contraste com a contracapa, que era estranhamente bizarra e feia. Demorou um tempo para assimilar a proposta do disco, ainda mais da forma como eles usavam propositalmente um senso de humor doentio e belo nas músicas. Ficava intrigado e fascinado pela insanidade instrumental e vocal, melodias belas e pesadas que por vezes se chocavam com doses de experimentalismo e algumas bizarrices. Estilo característico de Mike Patton, com nítidas influências de seu projeto paralelo, Mr. Bungle.

Não cheguei a ouvir o disco na íntegra no meu primeiro contato e nem tive oportunidade de gravar uma fita cassete, que era a forma mais viável de ter uma cópia de qualquer disco nessa época. Consegui ouvir anos depois, quando já morava na capital e pude comprar a versão em CD. Hoje é tão raro a gente sentar, se isolar e ouvir um disco do início ao fim. Geralmente ouvimos quando estamos trabalhando, conversando, dirigindo, fazendo faxina e etc… Parece desperdício de tempo se desligar de tudo por cerca de uma hora, sentar e ouvir um disco por inteiro, tanto em mídia física quanto streaming.

Quando finalmente ouvi, viajei nos arranjos, melodias e ousadas experimentações que permeavam o disco, sentindo o clima macabro e etéreo que oscilava entre uma canção e outra. O contraste da beleza do cisne branco com a estranheza da contracapa causava desconforto. Tal desconforto ficou evidente, não passava do reflexo que a banda estava vivendo pós ressaca da fama do disco The Real Thing, que rendeu até registro ao vivo: Live At The Brixton Academy. Para quem não sabe, Angel Dust é o nome popular de uma droga alucinógena, usada originalmente como anestésico veterinário e pode levar à morte.

Toda inquietação ainda se materializa até hoje quando ouço faixas mais pesadas e barulhentas, como “Jizzlobber” e “Malpractice” que oscilam entre as mais tranquilas, “RV”, “A Small Victory” e “Kindergarten“, alternando estados eufóricos e destrutivos num curto espaço de tempo. Tal como arremessar um objeto contra a parede e depois juntar os cacos. Minha favorita é “Be Agressive”. Cheia de peso e agressividade, com guitarra funk distorcida e órgãos no estilo anos 60.

Sempre que ouço procuro compreender a curiosa bipolaridade musical que o disco representa. Um disco pesado, sombrio, hipnotizante e com elementos eletrônicos que, de incompreendido, ganhou o devido respeito dos fãs e da crítica, inclusive figura na lista dos 50 discos mais influentes de todos os tempos, segundo a revista Kerrang. Com toda estranheza, bizarrice, ousadia e experimentações asseguro que esse disco tem lugar garantido na minha estante.

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